O perambular pela colcha de retalhos e a síndrome do avestruz: a retórica didática das licitações no País
Difícil inaugurar esse texto sem cair na redundância de se anunciar o assunto que vem habitando as redes sociais desde o dia 1º de abril, em matéria de logística pública. Sem dizer que, há algumas semanas, inaugurou-se um período de transição em sede do regramento de contratações governamentais no País, e que, tal é o desígnio, findará em dois anos.
No entanto, caro(a) leitor(a), se é a falta de ineditismo que contamina as primeiras linhas deste artigo, opto por, doravante, assumir linha mais…disruptiva, creio que essa seja a palavra adequada, apesar de, em si, compor também termo recorrente nos dias atuais. O convite é o da fuga da zona de conforto, aliás, este sempre é um bom convite, convenhamos.
Alguns números, a fim de prover um mínimo de concretude aqui. Lei nº 14.133, de 1º de abril do corrente ano. Mais de 20 anos desde sua concepção, ainda tênue, como projeto. Cerca de 8 anos de discussão no Congresso Nacional. Revogará, em 2023, 3 leis de licitações vigentes em nosso ordenamento jurídico: as Leis nº 8.666/93, 10.520/02 e (a primeira metade da lei) 12.462/11. 5 modalidades licitatórias. 6 critérios de julgamento. 7 regimes de execução para obras e serviços de engenharia. 2 modos de disputa. R$ 50.000,00 como o teto para dispensa de licitação para aquisição de bens e a contratação de serviços em geral. R$ 100.000,00, para obras e serviços de engenharia. 4 tipos de sanções administrativas. 12 crimes tipificados. Um glossário (art. 6º) com 60 definições. 194 artigos.
São números que apenas prenunciam a densidade de uma lei que, em si, consubstancia um dos pilares do direito público pátrio. Rege a maneira de se aplicarem recursos que atingem algo próximo a 12% do PIB brasileiro, eis o valor cabalístico, sempre alçado em discursos que podem se valer de menor rigor científico. E, como tal, desperta uma desmesurada ansiedade nos legislados, ávidos pelo mínimo de fluência na aplicação de normas que, eivadas de um paradoxo entre entremeadas e difusas, atraem a tal da insegurança jurídica, já alcunhada de direito administrativo do medo – um jargão que apõe raízes mais profundas em nosso imaginário, lamentavelmente.
Façamos, pois, brevíssima digressão.
Duas pessoas não aprendem, de modo idêntico, um mesmo conteúdo. Os indivíduos vivenciam o processo de aprendizagem de maneira muito própria, como resultado da bagagem hereditária, das experiências pessoais e das exigências do ambiente, conforme leciona o influente teórico educacional David Kolb. Há o que chamamos de estilos de aprendizagem, que indicam a maneira como os discentes organizam e conectam novas informações durante o desenvolvimento de suas competências, na dimensão cognitiva. Nesses lindes, o modelo de Felder e Soloman (1991)[1] sobressai-se, remanescendo como um dos mais utilizados no contexto brasileiro e internacional em pesquisas referentes à customização de materiais de aprendizagem.
Grosso modo, esses autores traçam uma taxonomia de estilos de aprendizagem, em quatro dimensões: processamento, percepção, alimentação e compreensão. Não se preocupe, jamais ousarei ingressar em zonas mais intrínsecas da psique humana. Limito-me a meras ilustrações. Por exemplo, segundo Felder e Soloman, na dimensão alimentação, há pessoas que tendem a ser mais visuais, ao passo que outras, mais verbais. No estudo de determinada disciplina, as primeiras privilegiam esquemas, gráficos e mapas mentais; as segundas, resumos escritos, a repetição de palavras e a leitura de suas notas em silêncio.
Mas é a dimensão compreensão que nos interessa. Na primeira categoria, teríamos os indivíduos tendentes a ser sequenciais. Entendem melhor um conteúdo quando apresentado de forma gradual, paulatina e lógica. São analíticos. Seguem um caminho concatenado, passo a passo, na busca de uma compreensão dilatada, mesmo sem saber aonde chegarão. De forma alegórica, veem os livros, as cadeiras, as estantes, os corredores, conectam essa informação e inferem que estão em uma biblioteca.
Na segunda, temos os indivíduos globais. Privilegiam o macro, a visão do todo, como condição sine qua non de bem compreenderem suas partes. São sintéticos. Precisam ver a biblioteca, para, em seguida, absorverem a lógica imanente à existência das cadeiras, dos livros, das estantes e dos corredores.
Ah, ninguém é puramente visual ou verbal. Nem sequencial ou global. Somos um misto desses polos, por vezes tendendo mais para os extremos desses continuum.
Fim da digressão. Voltemos, pois, ao mote deste artigo.
O discente sequencial carece, manifestamente, de um material didático sequencial, que o conduza, passo a passo, na montagem do quebra-cabeça. Precisa de um roteiro, de um guia. Tudo bem, a não ser um singelo probleminha. A lei não faz esse papel. Não é material didático. A redação normativa, enquanto esteada na legística, não nasce para favorecer a aprendizagem. Nasce para prover regras. O aspecto didático é para lá de secundário. Assim, o indivíduo sequencial, muitas vezes, assume uma de duas estratégias das quais restará vítima.
1A primeira delas é a mais bruta. Pega a lei e lê e estuda artigo por artigo, na sequência, como se fosse um magazine degustado página a página. A vã esperança, restrita a premissa tácita, é que a lei o conduzirá em uma espiral do conhecimento. Mais provável é que o conduza a um perambular por uma colcha de retalhos. Não adentrarei em maiores detalhes nesse ponto. Mas dou um exemplo. Padronização – um dos temas mais reforçados na lei. É tocado nos artigos 6º, 19, 40, 41, 43, 47, 75 e 174. Sim, as peças do quebra-cabeça estão dispersas. Retalhadas.
2A outra estratégia é a tal da síndrome do avestruz. O discente, sem a visão sistêmica da lei, opta por se especializar em determinada temática. Resolve, por exemplo, ser o “cão chupando manga” em termo de referência. Faz cursos e mais cursos nesse substrato específico. O problema é que, por vezes, cria uma visão hipertrofiada no objeto de estudo, sem que consiga fazer as interconexões necessárias. Qual a relação entre o termo de referência e o estudo preliminar? E o plano anual de contratações? E a estratégia do órgão ou entidade? E os instrumentos orçamentários (PPA, LDO, LOA)? E a estratégia federal de desenvolvimento ou os objetivos de desenvolvimento sustentável (EFD / ODS)? E a instrução de sanções? São questões com riscos de permanecerem turvas. O avestruz permanece hiperespecializado em seu buraco. Mas a falta da visão do todo acaba por comprometer sua expertise.
A alegoria, a ambas essas estratégias, é a de que se está montando um quebra-cabeça, de fato. Sem jamais ter visto a capa da caixa, que traz a figura a ser montada. No escuro. E com uma lanterna. Uma análise que provavelmente não culmina na síntese.
O discente que opta pela estratégia global, em seu turno, parte de uma concepção holística da lei. Aqui, a ótica é a do diploma enquanto instrumento político e de gestão do Estado. Entende o desígnio da lei. Vê a biblioteca, no primeiro instante, para, em seguida, mergulhar na montagem das cadeiras, das estantes, dos livros. Aqui, à síntese segue a fortuita análise, com maior cognoscibilidade. Acendeu-se, de início, a luz. Viu-se a capa do quebra-cabeças.
Fato é que, na matéria tocada, o discente parece não gozar de muita opção. Talvez tenha que adaptar seu estilo de aprendizagem ao meio, e optar pelo global, quando possível. Nesse caso, a porta de entrada na Lei jamais será o artigo 1º, mas sim o 11, que traz os objetivos dos procedimentos licitatórios: efetividade, isonomia, preço econômico, inovação e desenvolvimento nacional sustentável. O resto da lei? É governança. São instrumentos de governança que visam a aumentar as chances de se alcançarem esses objetivos.
Nesse caso, podemos entender, de início, o motivo do step in right. Da declaração diferida da nulidade do contrato. Do diálogo competitivo, PMI, maior retorno econômico. Padronização. Centralização. Análise do balanço econômico dos últimos dois anos. E assim vai.
O convite, ao final, é o de darmos um passo atrás, para ver o todo. Como fazer? Isso é papo para outro artigo.